31/05/2025

Resenha: Em Que Creem Os Que Não Creem (Umberto Eco, Carlo Maria Martini)

 


Em busca do sagrado (ou não): uma resenha de Em Que Creem Os Que Não Creem


Introdução

Quando a fé e a razão se encontram em um diálogo aberto e respeitoso, nasce algo raro: um espaço real de escuta. É exatamente isso que propõe o livro Em Que Creem Os Que Não Creem, fruto da correspondência entre dois nomes que não poderiam ser mais distintos — e mais complementares: o escritor Umberto Eco e o cardeal Carlo Maria Martini.

Publicado originalmente na Itália nos anos 1990, o livro reúne uma série de cartas trocadas entre Eco, ateu declarado e intelectual brilhante, e Martini, então arcebispo de Milão, profundo conhecedor da teologia cristã. A proposta, inicialmente lançada pelo jornal italiano Liberal, era simples: discutir temas essenciais da existência humana como a ética, a morte, a esperança e a busca por sentido — cada um a partir de sua perspectiva.

O resultado é uma leitura envolvente e provocadora, que nos convida a refletir não só sobre o que cremos, mas como cremos — ou deixamos de crer.

Enredo

Não há, propriamente, um “enredo” em Em Que Creem Os Que Não Creem, no sentido tradicional da ficção. Trata-se de um livro epistolar, composto por cartas e textos reflexivos escritos por Eco e Martini, que vão se alternando ao longo das páginas.

Os temas surgem a partir de uma primeira provocação feita por Eco: em um mundo cada vez mais secularizado, será possível manter uma ética sem a fé? Martini responde, e o diálogo se desenrola a partir daí, abordando assuntos como a existência de valores universais, o papel da religião na sociedade moderna, o sentido da morte e da esperança, e até a figura de Jesus — interpretada sob diferentes óticas.

O tom é sempre respeitoso, e o contraste entre as visões de mundo não gera confronto, mas sim uma curiosa harmonia. É quase como assistir a uma partida de xadrez entre dois grandes mestres — cada um com seu tabuleiro, mas jogando no mesmo espírito.

Análise crítica

Ler Em Que Creem Os Que Não Creem é como estar em uma sala silenciosa, iluminada por uma luz suave, ouvindo dois homens sábios trocando ideias sem pressa. A linguagem de Eco é irônica, sofisticada, mas sempre acessível; sua mente filosófica transita com naturalidade pela história, pela semiótica, pela literatura. Já Martini é sereno, direto, e profundamente humano — sua escrita exala compaixão, mesmo nos momentos de firmeza.

O livro é curto, mas denso. Não se trata de uma leitura rápida, nem deve ser. Cada carta pede um tempo de digestão, como um vinho encorpado que merece ser saboreado. Os temas são universais, e mesmo leitores não religiosos — como é o caso de Eco — encontrarão aqui uma conversa honesta sobre ética, dor e transcendência.

Uma das maiores qualidades do livro é não tentar converter ninguém. Eco não tenta provar que Deus não existe, e Martini não quer salvar almas pela escrita. Ambos partem do princípio de que o diálogo é possível, mesmo quando não há consenso. E isso, num mundo cada vez mais polarizado, é revolucionário.

Conclusão

Terminei Em Que Creem Os Que Não Creem com a sensação de ter aprendido mais sobre mim mesmo do que sobre fé ou razão. Porque, no fundo, o livro não fala apenas de religião ou de filosofia — fala de humanidade. De como somos feitos de perguntas, e de como é possível crescer quando ouvimos quem pensa diferente.

Recomendo esta leitura a todos que buscam mais do que respostas: que buscam boas perguntas. Aos que apreciam diálogos inteligentes, que não subestimam o leitor. E, especialmente, aos que acreditam que o respeito mútuo é uma das maiores formas de sabedoria.

Se você gostou de livros como O Nome da Rosa ou se já se sentiu desafiado por questões de fé, espiritualidade ou ética, este livro pode ser um companheiro instigante. Leia com calma. Leia com abertura. E prepare-se para sair diferente.




30/05/2025

Resenha: Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoiévski)



Resenha:
Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoiévski)

Entre a lucidez e a loucura: uma resenha de Memórias do Subsolo


Introdução

Ler Memórias do Subsolo é como encarar um espelho distorcido da alma humana — um daqueles espelhos que nos mostram o que preferíamos manter escondido. Publicado em 1864, esse romance curto, porém denso, de Fiódor Dostoiévski é um dos marcos iniciais da literatura existencialista. Antes mesmo de autores como Jean-Paul Sartre e Albert Camus colocarem o absurdo e a angústia no centro da ficção filosófica, Dostoiévski já nos entregava um narrador que parece falar diretamente do abismo — ou melhor, do subsolo da psique humana.

Considerado por muitos o precursor do existencialismo literário, Dostoiévski constrói aqui um personagem-narrador que desafia convenções morais, intelectuais e até mesmo narrativas. E o faz com uma intensidade desconcertante.

Enredo

Dividido em duas partes, Memórias do Subsolo começa com um monólogo brutal e filosófico, onde o narrador — um funcionário público aposentado e isolado, que vive em São Petersburgo, Rússia — nos apresenta sua visão de mundo: amarga, contraditória, ressentida. Ele não tem nome, nem rosto, e talvez por isso mesmo pareça tão universal. Essa primeira parte é quase um manifesto — ou uma confissão — em que ele desmonta ideias iluministas de razão e progresso, mostrando como o ser humano pode deliberadamente agir contra seus próprios interesses.

Na segunda parte, intitulada "A propósito da neve derretida", somos levados a episódios específicos da juventude do narrador, que ilustram sua incapacidade de se relacionar com os outros e consigo mesmo. Há aqui encontros patéticos, constrangedores e dolorosamente humanos — em especial com antigos colegas e com uma jovem chamada Liza. Esses momentos não apenas ilustram a teoria apresentada antes, como também revelam um abismo emocional que vai se alargando conforme a narrativa avança.

Análise crítica

Ler Dostoiévski é sempre um exercício de imersão psicológica, mas em Memórias do Subsolo ele atinge uma profundidade singular. A prosa é densa, muitas vezes fragmentada, cheia de interjeições e digressões — como se o próprio narrador estivesse debatendo consigo mesmo (e com o leitor) a cada linha. Esse estilo, que pode parecer confuso à primeira vista, serve justamente para nos colocar dentro da mente instável e hiperconsciente do personagem.

Os temas abordados são existencialmente perturbadores: o livre-arbítrio, a racionalidade, o orgulho, o ressentimento, a dor como prazer, a autossabotagem. É impossível não se ver refletido, mesmo que minimamente, nas contradições do homem do subsolo. Ele é, afinal, uma espécie de anti-herói de todos nós — aquele que pensa demais, que sente demais, que se retorce dentro da própria consciência.

Outro ponto de destaque é a crítica feroz à sociedade e aos ideais da época. Em um momento em que o racionalismo e o positivismo ganhavam força na Europa, Dostoiévski faz justamente o oposto: mostra que o ser humano não é apenas razão, mas também caos, desejo e autodestruição. E é nesse ponto que o livro se torna assustadoramente atual.

Conclusão

Memórias do Subsolo não é uma leitura confortável — e nem deve ser. É um mergulho profundo e doloroso em tudo aquilo que nos torna humanos: nossas fraquezas, nossas contradições, nossos pensamentos mais sombrios. Mas é justamente por isso que a obra permanece tão poderosa, mesmo mais de 150 anos após sua publicação.

Para quem aprecia literatura que vai além da superfície e provoca questionamentos profundos, Memórias do Subsolo é leitura essencial. É um livro que exige entrega, paciência e reflexão — mas que, ao final, recompensa com uma compreensão mais aguda do ser humano. Recomendo fortemente, especialmente para quem já teve contato com outras obras de Dostoiévski, como Crime e Castigo ou Os Irmãos Karamázov, e quer se aprofundar ainda mais nesse universo fascinante e inquietante.


 

29/05/2025

Resenha: A Pediatra (Andréa Del Fuego)

 

Resenha:
A Pediatra (Andréa Del Fuego)

Introdução

Prepare-se para mergulhar num romance provocador e instigante. A Pediatra, da escritora brasileira Andréa Del Fuego, é daqueles livros que nos tiram do conforto e nos fazem repensar estereótipos — especialmente sobre a maternidade, o corpo feminino e as expectativas sociais. Vencedora do Prêmio José Saramago por Os Malaquias, Del Fuego volta aqui com um texto agudo, irreverente e muito necessário.

Enredo

Em A Pediatra, acompanhamos Cecília, uma médica extremamente competente, mas completamente avessa à ideia de ter filhos — ou qualquer tipo de envolvimento emocional com crianças fora do consultório. Ela é metódica, prática, seca. Seu cotidiano se divide entre atendimentos, procedimentos e a busca obsessiva por controle em todas as esferas da vida. No entanto, a chegada de um novo vizinho — um homem com uma filha pequena — abala essa estabilidade e obriga Cecília a confrontar tudo aquilo que jurou rejeitar. A partir daí, o leitor testemunha a colisão entre o instinto de autopreservação da protagonista e os vínculos inesperados que a realidade insiste em costurar.

Análise crítica

A escrita de Andréa Del Fuego é precisa e ferina, alternando momentos de humor ácido com uma crueza incômoda, mas incrivelmente autêntica. A autora brinca com os limites do afeto, da ética profissional e da solidão moderna, sem recorrer a clichês ou soluções simplistas. É um retrato nu e cru de uma mulher que desafia todas as expectativas que se impõem ao feminino — especialmente em um país como o Brasil, onde maternidade e cuidado são quase sinônimos.

O destaque está na construção da protagonista: Cecília é incômoda, muitas vezes antipática, mas profundamente humana. É impossível não se ver refletido em suas contradições, mesmo que em aspectos mínimos. A linguagem é contemporânea, afiada, com frases curtas que traduzem bem o universo emocional contido da personagem.

Conclusão

A Pediatra é uma leitura indispensável para quem busca uma ficção literária que provoque, questione e surpreenda. Com um olhar corajoso sobre temas delicados, Andréa Del Fuego entrega um romance inquieto, atual e necessário. Não é um livro para confortar, mas para desconstruir. E é justamente por isso que merece ser lido.

Se você gosta de narrativas que desafiam expectativas e mergulham no lado mais sombrio — porém real — das relações humanas, A Pediatra vai te marcar.


25/05/2025

Resenha: As Intermitências da Morte (José Saramago)

Resenha:
As Intermitências da Morte
(José Saramago)


Introdução

Imagine um país onde, de repente, ninguém mais morre. Nenhum anúncio celestial, nenhuma explicação científica. A morte, simplesmente, deixa de agir. Esse é o ponto de partida de As Intermitências da Morte, obra do premiado autor português José Saramago, que nos conduz por uma fábula filosófica e provocadora sobre a existência, os limites da vida — e do próprio sistema.

Enredo

No primeiro dia do ano, a morte resolve tirar férias. A partir daí, o país mergulha em uma crise inesperada: hospitais lotados de pacientes em estado terminal que não morrem, famílias sem saber como lidar com parentes que não partem, funerárias à beira da falência, e governos tentando encontrar soluções para o "problema da imortalidade".

Com ironia e genialidade, Saramago apresenta a figura da morte como uma personagem concreta — uma mulher que escreve cartas, monta a cavalo e até se apaixona. O livro se divide em duas partes bem distintas: uma mais satírica e social, que mostra o caos gerado pela ausência da morte; e outra mais intimista, centrada no encontro entre a morte e um violoncelista.

Análise crítica

A escrita de Saramago exige atenção: frases longas, pouca pontuação tradicional e diálogos fundidos ao texto. Mas, para quem aceita o convite, a leitura é recompensadora. O autor combina crítica social, filosofia, humor e poesia em uma narrativa que nos faz rir e refletir na mesma medida.

Um dos grandes méritos do livro é humanizar a morte. Ao torná-la personagem, Saramago nos força a repensar nossos próprios medos, rituais e dependência das estruturas que cercam a finitude. O tom irônico e sarcástico contribui para suavizar temas densos, sem jamais esvaziá-los.

Conclusão

As Intermitências da Morte é uma leitura instigante e singular. Com seu estilo inconfundível, Saramago nos entrega uma obra que provoca e emociona, ao mesmo tempo em que critica instituições e costumes. Um livro que nos lembra que, talvez, a morte tenha mais humanidade do que imaginamos — e que viver sem ela pode ser um fardo ainda maior.


 

24/05/2025

Resenha: Desonra (J. M. Coetzee)


Resenha:
Desonra
(J. M. Coetzee)


Introdução

J. M. Coetzee é um daqueles autores que não escrevem para agradar, mas para confrontar. Nobel de Literatura em 2003, ele é conhecido por mergulhar em dilemas morais, tensões sociais e a condição humana com uma frieza desconcertante. Em Desonra (Disgrace, no original), publicado em 1999, Coetzee entrega uma narrativa poderosa, incômoda e profundamente reflexiva sobre identidade, poder, gênero e culpa em uma África do Sul pós-apartheid que ainda sangra, mesmo sob nova pele.

Este é um daqueles romances que você termina e permanece com ele — não porque foi reconfortante, mas porque ele perturba com inteligência.

Enredo

A história acompanha David Lurie, um professor universitário de meia-idade que se vê no centro de um escândalo sexual com uma aluna. Com a carreira arruinada, ele decide se refugiar na fazenda de sua filha Lucy, em uma região rural marcada por tensões raciais e violência latente. Mas a paz que ele espera encontrar logo é despedaçada por um evento brutal, que altera radicalmente sua relação com a filha, com ele mesmo e com o novo país em que vive.

Sem cair em soluções fáceis ou maniqueísmos, Coetzee desenha um enredo sóbrio e direto, onde a decadência do protagonista é apenas a superfície de uma crise muito mais profunda.

Análise crítica

A escrita de Coetzee é seca, quase clínica, mas isso só intensifica o impacto emocional do livro. Cada frase é calculada, contida, mas carregada de tensão. O autor não julga seus personagens, tampouco oferece respostas fáceis ao leitor — e é justamente essa neutralidade desconfortável que dá força à narrativa.

David Lurie é um personagem complexo, muitas vezes detestável, mas também incrivelmente humano. Sua arrogância, vulnerabilidade e transformação (ou ausência dela) funcionam como espelho de uma sociedade igualmente ambígua e em transição. Lucy, sua filha, representa uma nova geração de sul-africanos — mais silenciosa, mas não menos contundente — que tenta, à sua maneira, reconstruir um sentido de pertencimento em meio ao caos herdado.

Os temas centrais do livro — poder, violência, desumanização, perdão e reconstrução — são tratados com um realismo brutal. A desonra aqui não é só a de um homem, mas de um sistema, de um passado que não passa e de uma nação tentando se reinventar.

Conclusão

Desonra é uma leitura poderosa e desconfortável — e, por isso mesmo, essencial. Coetzee nos desafia a encarar feridas que preferiríamos ignorar, tanto no plano individual quanto coletivo. A escrita sóbria e os dilemas morais profundos fazem deste romance uma obra que permanece ecoando muito tempo depois da última página.

Recomendo fortemente para quem busca uma literatura que não apenas emocione, mas provoque, questione e desestabilize. Uma obra-prima que incomoda — e, por isso mesmo, transforma.

23/05/2025

Os 8 livros mais vendidos de Stephen King

 

Os 8 livros mais vendidos de Stephen King



Se você gosta de histórias arrepiantes, personagens intensos e tramas que grudam na cabeça, é impossível ignorar Stephen King. Conhecido como o mestre do suspense e do terror, ele já escreveu mais de 60 romances e dezenas de contos — muitos deles se tornaram clássicos da cultura pop e ganharam adaptações para o cinema e a TV.

Mas, com tanta obra no currículo, por onde começar? Ou quais são os títulos que realmente marcaram gerações de leitores ao redor do mundo?

Nesta lista, você confere os 8 livros mais vendidos de Stephen King e descobre rapidamente o que torna cada um deles tão especial — seja pela tensão psicológica, pelos elementos sobrenaturais ou pelas reflexões humanas que só King sabe provocar.



  1. O Iluminado (The Shining)
    Um garoto com poderes psíquicos enfrenta o terror sobrenatural em um hotel isolado. Clássico do horror psicológico.

  2. It: A Coisa (It)
    Um grupo de amigos enfrenta uma entidade maligna que assume a forma de um palhaço. Medo, infância e traumas se misturam.

  3. Carrie, a Estranha (Carrie)
    Adolescente oprimida descobre poderes telecinéticos e se vinga de seus agressores. Foi o primeiro sucesso de King.

  4. A Espera de um Milagre (The Green Mile)
    Drama carcerário com toques sobrenaturais, que trata de fé, compaixão e injustiça. Um dos mais emocionantes.

  5. Misery: Louca Obsessão (Misery)
    Escritor é sequestrado por uma fã obcecada após um acidente. Um suspense claustrofóbico e angustiante.

  6. Cemitério Maldito (Pet Sematary)
    Família enfrenta consequências sombrias ao desafiar a morte. Um dos livros mais sombrios de King.

  7. A Torre Negra – O Pistoleiro (The Dark Tower)
    Início da épica saga de fantasia e ficção científica com o pistoleiro Roland. Mistura gêneros de forma única.

  8. Sob a Redoma (Under the Dome)
    Uma cidade é isolada por uma redoma invisível e enfrenta o colapso social. Um experimento social em forma de thriller.



22/05/2025

Resenha: As Horas (Michael Cunningham)

 

Resenha:
As Horas
(Michael Cunningham)


Introdução

As Horas, de Michael Cunningham, é uma daquelas obras que constroem pontes entre tempos, vozes e emoções com uma delicadeza rara. Publicado em 1998 e vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção em 1999, o romance presta uma homenagem intensa à escritora Virginia Woolf e, especialmente, à sua obra Mrs. Dalloway. Cunningham entrelaça as vidas de três mulheres em épocas distintas, unidas por fios invisíveis de literatura, sofrimento, amor e busca por sentido — tudo isso em um único dia.

Com uma escrita elegante e melancólica, As Horas fala sobre o peso da existência e a beleza dos pequenos momentos, fazendo o leitor mergulhar fundo nas camadas da mente humana.

Enredo

A narrativa acompanha três personagens centrais:

  • Virginia Woolf, em 1923, enquanto escreve Mrs. Dalloway e enfrenta seus demônios pessoais;

  • Laura Brown, uma dona de casa nos anos 1950, em Los Angeles, que lê Mrs. Dalloway enquanto luta para manter as aparências de uma vida perfeita;

  • Clarissa Vaughan, nos anos 1990, em Nova York, que vive um dia semelhante ao de Clarissa Dalloway, preparando uma festa para um amigo querido que está gravemente doente.

Essas três histórias se desenrolam em paralelo, como ecos umas das outras, revelando de forma sutil como os papéis que assumimos — mãe, esposa, amiga, escritora — moldam (e por vezes sufocam) nossas identidades.

Análise crítica

Michael Cunningham impressiona com sua capacidade de captar o fluxo dos pensamentos de forma tão sensível e precisa, à maneira de Virginia Woolf. Sua escrita é envolvente, lírica sem ser excessiva, e consegue transmitir a densidade emocional das personagens com uma leveza quase mágica. Cada capítulo parece uma meditação sobre o tempo, a memória, a mortalidade e a liberdade — temas universais tratados com muita intimidade.

As protagonistas são mulheres complexas, cheias de contradições, que vivem dilemas silenciosos, mas profundos. O livro se destaca por mostrar que o ordinário pode ser extraordinário: uma ida à floricultura, um beijo inesperado, a leitura de um romance — tudo é carregado de significado.

Além disso, Cunningham consegue dialogar com Mrs. Dalloway sem tornar As Horas dependente dele. Quem conhece a obra de Woolf certamente vai apreciar mais nuances, mas quem não leu ainda encontrará aqui uma narrativa completa, intensa e bela por si só.

Conclusão

As Horas é um livro para ser sentido tanto quanto compreendido. Um convite à contemplação da vida nas suas formas mais sutis — e mais dolorosas. Ao final, resta uma sensação agridoce: a de que mesmo nas rotinas mais simples, há profundezas inexploradas.

Recomendo fortemente a leitores que apreciam literatura introspectiva, que dialoga com o tempo e com os silêncios da alma. Uma leitura sensível, sofisticada e inesquecível.

21/05/2025

Resenha: Enclausurado (Ian McEwan)

Resenha:
Enclausurado
 (Ian McEwan)


Introdução

Ian McEwan é um mestre em criar narrativas instigantes e inesperadas, sempre com uma escrita afiada e inteligente. Em Enclausurado (Nutshell, no original), publicado em 2016, o autor mais uma vez nos surpreende ao escolher um narrador absolutamente inusitado: um feto. Isso mesmo. A história é contada do ponto de vista de um bebê ainda no útero, prestes a nascer — e que, de lá, observa (e compreende) uma trama digna de Shakespeare acontecendo ao seu redor.

Com sua prosa elegante e provocadora, McEwan transforma o absurdo em literatura sofisticada e brilhante, desafiando o leitor desde a primeira página.

Enredo

Em Enclausurado, acompanhamos um narrador muito especial: um feto de oito meses que escuta, sente e analisa tudo o que acontece do lado de fora da barriga de sua mãe, Trudy. Ela, por sua vez, está envolvida em um plano sinistro com Claude — irmão do pai do bebê — para eliminar o marido e ficar com a casa e, talvez, com a vida toda.

Sim, a estrutura remete a Hamlet — e não por acaso. McEwan se inspira na tragédia de Shakespeare para construir sua trama, mas com um toque de ironia contemporânea e crítica social. A tensão cresce à medida que o narrador, impotente, tenta entender e processar os dilemas morais e afetivos dos adultos ao seu redor — tudo enquanto ainda nem nasceu.

Análise crítica

A escolha do ponto de vista é, sem dúvida, o maior trunfo (e desafio) de Enclausurado. McEwan transforma o feto em um observador filosófico, culto, reflexivo — um pequeno Hamlet moderno, com pensamentos sobre poesia, política, vinhos e ética, mesmo sem ter visto o mundo com os próprios olhos. A princípio, essa proposta pode parecer forçada ou até cômica demais, mas a habilidade do autor faz com que funcione de maneira surpreendente.

A escrita de McEwan é como sempre precisa, refinada e irônica. Ele consegue equilibrar o humor com a tensão, e a introspecção com a crítica social. O livro levanta questões sobre traição, moralidade, livre-arbítrio e responsabilidade, tudo sob o olhar curioso e impotente de quem ainda não teve a chance de viver.

Embora breve, Enclausurado é um romance denso, engenhoso e provocador — que brinca com as fronteiras entre o real e o simbólico, o absurdo e o literário.

Conclusão

Enclausurado é uma leitura original, ousada e, ao mesmo tempo, profundamente humana. Ian McEwan mais uma vez desafia convenções narrativas e entrega uma história envolvente, que mistura tragédia clássica, humor ácido e crítica contemporânea com maestria.

Recomendo para quem busca uma experiência de leitura fora do comum, inteligente e que instiga tanto pela forma quanto pelo conteúdo. Um livro curto, mas que deixa ecos duradouros.

20/05/2025

Resenha: Terra Sonâmbula (Mia Couto)

 

Resenha:
Terra Sonâmbula
 (Mia Couto)


Introdução

Mia Couto é uma das vozes mais singulares da literatura de língua portuguesa. Nascido em Moçambique, o autor mistura realismo mágico, oralidade africana e uma poética única da linguagem para dar forma a narrativas que transcendem o tempo e o espaço. Em Terra Sonâmbula, publicado em 1992, Couto estreia no romance com uma obra que logo se consagraria como uma das mais importantes da literatura africana contemporânea.

O livro foi escolhido como uma das doze melhores obras africanas do século XX pela Fundação do Livro Africano, e não é difícil entender por quê. Terra Sonâmbula é ao mesmo tempo um retrato devastador de um país em guerra e uma celebração da imaginação como forma de resistência.

Enredo

A história se passa em Moçambique, durante um período indefinido de guerra civil. Em meio ao caos, dois personagens improváveis — Muidinga, um garoto doente e sonhador, e Tuahir, um velho contador de histórias — encontram refúgio em um ônibus queimado abandonado à beira de uma estrada poeirenta.

Ali, Muidinga descobre um conjunto de cadernos deixados por Kindzu, um homem que também buscava sentido em uma terra destruída. Ao ler esses cadernos em voz alta, o menino passa a viver duas histórias paralelas: a sua e a de Kindzu. Entre ficção e memória, presente e passado, os fios se entrelaçam num tecido narrativo rico e misterioso.

Análise crítica

A beleza de Terra Sonâmbula está, em grande parte, na linguagem. Mia Couto reinventa o português com uma liberdade poética que lembra Guimarães Rosa, mas com alma africana. Suas metáforas são orgânicas, seus neologismos carregam sabedoria popular, e sua escrita transforma miséria e dor em algo profundamente lírico.

A guerra, embora pano de fundo constante, não é o centro da narrativa. O foco está nas pessoas, nos afetos, na memória e na esperança que insiste em brotar mesmo em solo árido. Os personagens de Couto são sonhadores num mundo em ruínas, sobreviventes não só do conflito armado, mas da desesperança.

O enredo pode parecer fragmentado à primeira vista, mas há uma lógica de sonho que conduz tudo — como se o livro inteiro fosse uma longa vigília entre a realidade dura e a necessidade de sonhar. O título Terra Sonâmbula é perfeito: a terra (o país, o povo) anda como que dormindo, anestesiada pela violência, mas ainda viva, ainda movida por desejos, memórias e histórias.

Conclusão

Terra Sonâmbula é um livro que encanta pela linguagem e emociona pela humanidade. Com sensibilidade e uma voz narrativa profundamente original, Mia Couto nos convida a enxergar além da guerra, além da dor — e encontrar beleza na resistência poética de quem se recusa a deixar de sonhar.

Recomendo fortemente para quem busca uma leitura que desafia os sentidos, que mistura lirismo com crítica social, e que faz da literatura um ato de cura e esperança. Uma obra-prima da literatura africana e universal.

19/05/2025

Resenha: A Cachorra (Pilar Quintana)

 

Resenha:
A Cachorra
(Pilar Quintana)


Introdução

A Cachorra é um daqueles romances curtos que deixam marcas profundas. Escrito pela autora colombiana Pilar Quintana, o livro foi finalista do International Booker Prize e vem ganhando destaque no cenário literário internacional pela forma corajosa e direta com que aborda temas muitas vezes silenciados. Ambientado em uma vila litorânea da Colômbia, o romance é ao mesmo tempo brutal e comovente — uma exploração poderosa sobre maternidade, solidão e instintos.

Com uma escrita contida e afiada, Quintana constrói uma narrativa intensa, que mostra o quanto a natureza humana pode ser tão selvagem quanto a floresta que cerca a protagonista.

Enredo

Em A Cachorra acompanhamos a vida de Damaris, uma mulher que vive com o marido na periferia de uma pequena cidade costeira da Colômbia. Eles são pobres, solitários e carregam o peso da frustração por não terem filhos. Um dia, Damaris adota uma cadela — uma filhote magra e frágil, que ela chama de Chirli. O gesto, aparentemente banal, abre espaço para a revelação de afetos profundos, frustrações antigas e desejos inconfessáveis.

À medida que a cachorra cresce e se comporta de maneira cada vez mais imprevisível, também se intensificam as emoções de Damaris, numa espiral de amor, dor e crueldade que espelha as próprias marcas da vida que ela carrega.

Análise crítica

O que mais impressiona em A Cachorra é a capacidade de Pilar Quintana de dizer tanto com tão pouco. Com uma linguagem econômica, quase seca, a autora constrói um retrato psicológico complexo de sua protagonista, sem jamais recorrer a melodramas ou explicações excessivas. Damaris é uma mulher comum, e é justamente aí que reside a força do romance: ela poderia ser qualquer uma, vivendo uma vida invisível à margem da sociedade, lidando com frustrações que muitas vezes não têm nome.

O ambiente — a selva úmida, a casa precária, o mar sempre presente — é quase um personagem. A natureza na obra de Quintana não é bucólica, mas selvagem, crua, reflexo da própria luta interna de Damaris. A maternidade, ou a ausência dela, é tratada de forma desconcertante, com honestidade rara. Não há idealizações — apenas desejo, perda, raiva e uma ternura dura, por vezes desconcertante.

É impossível sair ileso da leitura. Quintana nos obriga a encarar o lado sombrio do afeto, da condição feminina e da miséria — sem julgamentos, apenas com uma inquietante lucidez.

Conclusão

A Cachorra é um livro que impacta mais pelo que deixa no silêncio do que pelo que diz. Pilar Quintana entrega uma obra poderosa, que se inscreve entre os grandes romances contemporâneos latino-americanos com sua voz própria e sua coragem narrativa.

Recomendo para quem aprecia histórias intensas, de leitura rápida, mas com camadas profundas de significado. Um retrato comovente da mulher que ama, perde e resiste — como pode, como consegue, como a vida permite.


18/05/2025

Resenha: Cama de Gato (Kurt Vonnegut)

 

Resenha:
Cama de Gato
 (Kurt Vonnegut)


Introdução

Cama de Gato é uma daquelas obras que confirmam o porquê de Kurt Vonnegut ser considerado um dos grandes nomes da literatura do século XX. Publicado originalmente em 1963, o livro combina ficção científica, sátira política e filosofia existencial com a inteligência e o humor ácido característicos do autor. Nascido nos Estados Unidos, Vonnegut é conhecido por sua capacidade de transformar os absurdos da civilização moderna em literatura provocadora — e Cama de Gato talvez seja sua obra mais espirituosa e perturbadora ao mesmo tempo.

Com sua narrativa irreverente e cética, o livro mergulha em temas como religião, ciência, guerra e o apocalipse, tudo isso em uma trama que parece simples, mas é carregada de ironia e significado.

Enredo

A história de Cama de Gato acompanha o narrador, John (ou Jonah), um escritor que decide pesquisar os eventos do dia em que a bomba atômica foi lançada sobre Hiroshima. Sua investigação o leva à figura do Dr. Felix Hoenikker, um dos criadores da bomba, e à misteriosa substância "gelo-nove", uma invenção capaz de congelar instantaneamente qualquer água com a qual entre em contato.

A partir daí, o enredo se desdobra em uma viagem para a fictícia ilha de San Lorenzo, onde a ciência, a política e uma religião inventada — o bokononismo — colidem de maneira tragicômica. Ao longo do caminho, John se depara com personagens bizarros, revelações perturbadoras e a iminência do fim do mundo, tudo envolto em um clima de absurdo e crítica feroz à racionalidade ocidental.

Análise crítica

Cama de Gato é uma aula de como se faz sátira de verdade. Kurt Vonnegut usa o humor não para aliviar o peso dos temas abordados, mas para intensificá-los. Sua escrita é concisa, sagaz e incrivelmente fluida — é fácil se deixar levar pela narrativa e só depois perceber o quão profundamente ela questiona os pilares da nossa sociedade.

O livro critica tanto o otimismo cego da ciência quanto a religiosidade escapista. A criação do bokononismo, uma religião baseada em mentiras úteis, é um dos pontos altos da obra. Ela reflete perfeitamente o estilo de Vonnegut: debochado, mas profundamente humano. Ele não ridiculariza a fé ou o conhecimento — mas mostra como ambos podem ser usados para alimentar ilusões, controlar pessoas e provocar catástrofes.

Apesar do tom cômico, há uma melancolia subjacente em Cama de Gato. A sensação de que estamos todos presos em uma cama mal arrumada, tentando encontrar sentido num mundo que, talvez, nunca tenha feito sentido algum. A crítica à Guerra Fria, à corrida armamentista e ao imperialismo se encaixa perfeitamente nesse panorama caótico e atual.

Conclusão

Cama de Gato é uma leitura indispensável para quem gosta de literatura que desafia, que ri do absurdo humano e que, ao mesmo tempo, faz pensar profundamente. Kurt Vonnegut cria um universo delirante e cínico que, paradoxalmente, nos aproxima de verdades desconcertantes sobre o mundo real.

Recomendo para leitores que apreciam autores como George Orwell, Aldous Huxley e Philip K. Dick, mas que também querem algo com um toque mais irônico e existencial. Um clássico moderno que continua — infelizmente — tão relevante quanto no dia em que foi publicado.

17/05/2025

Resenha: Pachinko (Min Jin Lee)

 

Resenha:
Pachinko
 (Min Jin Lee)


Introdução

Pachinko é uma daquelas leituras que permanecem com o leitor por muito tempo após a última página. Escrito pela autora coreano-americana Min Jin Lee, o romance foi finalista do National Book Award e é amplamente aclamado como uma das mais importantes obras da literatura contemporânea sobre identidade, imigração e pertencimento. Ambientado entre a Coreia e o Japão, o livro atravessa quase um século de história, acompanhando quatro gerações de uma família coreana que luta por dignidade e sobrevivência em um país que nunca os aceita por completo.

Com uma escrita envolvente e profundamente sensível, Lee oferece uma narrativa grandiosa, mas extremamente íntima, mostrando que grandes eventos históricos sempre se manifestam nas vidas dos pequenos — nos afetos, nos gestos cotidianos, nas escolhas difíceis.

Enredo

Pachinko começa no início do século XX, em uma pequena vila na Coreia sob domínio japonês. Lá conhecemos Sunja, filha de um pescador, cuja vida muda drasticamente ao se envolver com um homem misterioso. As consequências desse relacionamento colocam Sunja em uma jornada de migração, resistência e reconstrução. Ao longo do tempo, vemos sua família se estabelecer em Osaka, no Japão, onde os coreanos são marginalizados, discriminados e relegados a posições sociais inferiores.

Apesar das adversidades, a família persevera, e a narrativa acompanha filhos e netos de Sunja, revelando como as marcas da guerra, do exílio e do preconceito moldam cada nova geração. O título do livro faz referência às casas de pachinko — jogos de azar muito populares no Japão — onde muitos coreanos encontram sustento, apesar do estigma social.

Análise crítica

O que mais impressiona em Pachinko é a habilidade de Min Jin Lee de transformar uma narrativa familiar em um épico silencioso. Sua prosa é clara, fluida e sem exageros estilísticos, mas carrega uma carga emocional poderosa. Ao evitar o melodrama, Lee permite que os dramas falem por si mesmos — o que os torna ainda mais devastadores.

Os temas são múltiplos e profundamente humanos: identidade, pertencimento, lealdade, sacrifício e resiliência. A condição dos coreanos no Japão é retratada com precisão histórica e sensibilidade, e o preconceito institucionalizado, que atravessa décadas, mostra como a luta por dignidade é longa e desigual. A religião, o papel da mulher, as escolhas morais e o peso da herança familiar também são explorados com maturidade e equilíbrio.

Os personagens são complexos, falhos e reais. Sunja, em especial, é inesquecível — símbolo de força silenciosa e amor incondicional. Mas mesmo os coadjuvantes têm profundidade, cada um com suas contradições e sonhos próprios. Pachinko é, acima de tudo, um romance sobre pessoas tentando viver com dignidade num mundo que frequentemente lhes nega essa possibilidade.

Conclusão

Pachinko é um romance belíssimo e comovente, que combina o escopo da história com a delicadeza dos detalhes íntimos. Min Jin Lee constrói um retrato vívido de uma família que, apesar de todas as perdas e dores, nunca deixa de lutar. É uma leitura intensa, que exige entrega, mas que recompensa com uma narrativa rica, empática e cheia de humanidade.

Recomendo para todos que se interessam por histórias sobre imigração, identidade e pertencimento, e para quem aprecia romances históricos bem construídos e com personagens inesquecíveis. Pachinko não é apenas um livro — é uma experiência literária profunda que nos lembra da força silenciosa dos que seguem em frente, mesmo quando o mundo insiste em empurrá-los para trás.

16/05/2025

Resenha: As Rãs (Mo Yan)

 


Resenha:
As Rãs
(Mo Yan)


Introdução

Poucos autores conseguem explorar com tanta ousadia e sensibilidade os paradoxos de um país quanto Mo Yan, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2012. Em As Rãs, publicado originalmente em 2009, o escritor chinês nos oferece uma narrativa ao mesmo tempo lírica e brutal sobre um dos temas mais delicados da história recente da China: a política do filho único. Combinando elementos autobiográficos, crítica social e realismo mágico, Mo Yan transforma uma história particular em um retrato universal das tensões entre dever, culpa, ideologia e humanidade.

As Rãs é um livro que provoca desconforto, reflexão e, sobretudo, empatia — não pelos extremos do regime, mas pelas pessoas que, mesmo sem escolha, tentam fazer o que acreditam ser o certo.

Enredo

Narrado por um dramaturgo chamado Tadpole, As Rãs reconstrói, em forma de cartas e memórias, a vida de sua tia Gugu — uma respeitada parteira e profissional da saúde que, com o tempo, se torna uma figura controversa por sua atuação inflexível na aplicação da política de controle populacional da China nas décadas de 1970 e 1980.

Ao longo do livro, acompanhamos a trajetória dessa mulher forte, inicialmente admirada por salvar vidas, e que depois passa a carregar a culpa de milhares de abortos e esterilizações forçadas. Entrelaçada a essa história está a própria transformação da sociedade chinesa, desde os tempos revolucionários até a abertura econômica. A figura simbólica das rãs — repetida em cenas oníricas e perturbadoras — funciona como metáfora para a maternidade, a fertilidade e os fantasmas do passado que insistem em retornar.

Análise crítica

As Rãs é, acima de tudo, uma obra sobre contradições. A maior delas talvez seja a própria protagonista: Gugu, ao mesmo tempo heroína e vilã, representa as ambiguidades morais daqueles que foram obrigados a escolher entre o bem coletivo e o sofrimento individual. Mo Yan não julga seus personagens com dureza, mas também não os isenta de responsabilidade — e é nessa tensão que a narrativa se torna mais poderosa.

O estilo do autor é inconfundível: mescla a tradição oral chinesa com uma escrita densa e repleta de imagens fortes. O realismo mágico aparece pontualmente, criando momentos de estranheza que ampliam a carga simbólica da narrativa. As cenas de parto, de repressão e de trauma são vívidas, e causam impacto emocional, mas nunca descambam para o sensacionalismo.

Ao expor as entranhas de uma política tão controversa como a do filho único, Mo Yan oferece ao leitor uma perspectiva rara: a da ambivalência. O autor não está interessado em panfletar ou absolver — ele quer, sobretudo, narrar. E, ao fazer isso com maestria, revela as cicatrizes profundas que décadas de controle ideológico deixaram nas famílias chinesas.

Conclusão

As Rãs é uma leitura desafiadora e necessária. Mo Yan entrega um romance intenso, repleto de dor, humanidade e crítica velada, que nos convida a refletir sobre os limites entre obediência e consciência, tradição e progresso, vida e ideologia. Com personagens complexos e uma prosa refinada, o autor constrói uma narrativa que ecoa muito além da realidade da China — ela fala de qualquer lugar onde o Estado se impõe sobre o corpo e o destino de seus cidadãos.

Recomendo esta obra para leitores que buscam não apenas boa literatura, mas também uma visão mais profunda sobre os dilemas humanos diante de políticas autoritárias. As Rãs é um espelho de um tempo que ainda reverbera — um romance inesquecível e corajoso, digno da grandeza de seu autor.